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sexta-feira, novembro 26, 2004

 

A independência do espírito

Introdução
“Somos verdadeiramente livres?”, “É urgente lutarmos contra o pensamento único”, “Fulano, espelhando os seus preconceitos, expressou a sua opinião …”, etc., etc.

Todas estas frases são comummente ouvidas entre nós e espelham a crenças de que não vivemos “em perfeita liberdade intelectual”. Insinuando, antes implicando, que existem “forças” que influenciam o sentido do pensamento.

O que é, absolutamente verdade. Eu acredito firmemente que o nosso pensamento sofre vários tipos de influências das quais não nos damos contas quando emitimos uma opinião sobre qualquer assunto.

E estas influências exercem-se seja nas questões meramente de actualidade, as questões de princípio, as de sociedade e de Vida e mesmo as profundamente filosóficas.

Primeira categoria de dependências
Em primeiro lugar existem as forças externas, sejam elas organizadas ou não, que manipulam o sentido do nosso pensamento pela escamoteação de factos relevantes e pela selecção dos importantes. Não interessa agora discutir se a escolha reflecte o sentimento profundo do editor e dos jornalistas, se é imposta pela direcção ou pelo conselho de administração ou se, como pretendem os fanáticos da teoria da conspiração, é influenciada por uma qualquer organização secreta. Ou ainda pelo suborno dado ao jornalista ou simplesmente porque ele ou ela querem dar uma queca com o relações públicas de determinada empresa/lobby/partido. Porque mesmo que seja o mais honesto e independente dos chefes de redacção de qualquer órgão de comunicação, aquilo que nos recebemos foi sempre filtrado pelo seu critério jornalístico. Ou seja, foi sempre uma escolha de um espírito que, ele próprio é influenciado.

Dentro destas forças externas, existe ainda a nossa rotina diária, os filhos, os chefes, os colegas, os clientes, etc. que nos consomem tempo e neurónios em quantidades massivas reduzindo a nossa paciência e vitalidade intelectual para analisar qualquer tema com a devida profundidade. Somos portanto obrigados a confiar naquilo que outros preparam para nós na grande maioria dos casos. Podemos escolher um ou dois assuntos sobre os quais nos debruçamos com tempo, que estudamos em profundidade e sobre os quais reflectimos empenhadamente; sobre tudo o resto – desde a Trindade até ao direito dos homossexuais a contraírem matrimónio, das próximas eleições ao sentido da Vida – temos que navegar à vista.

Para contrariar essas forças, e porque não faz sentido isolarmo-nos da actualidade nem podemos absorver tudo directamente, a única hipótese é escolher as fontes de informação que nos parecem mais eficazes, mais isentas e mais próximas da nossa maneira de ver o Mundo. Como era mais fácil o Mundo de certezas feitas da Idade Média em que não havia Grandes Perguntas – porquê Auschvitz?, quais os limites da teoria do conhecimento?, o tempo é curvo? – e a actualidade estava limitada à vivência diária na nossa aldeia.

Segunda categoria de dependências
Em segundo lugar existem as fidelidades escolhidas ou não. Essas fidelidades vêm do facto que nenhum de nós é uma ilha e portanto temos filiações diversas – em partidos, clubes de futebol, na empresa que é a nossa empregadora, no(s) nosso(s) circulo(s) de amigos, etc. – e temos atributos diversos e próprios – temos a nossa cidadania, a nossa família, o nosso género, a nossa cor de pele, etc.

Assim sendo, é provavelmente errado que, numa discussão que envolva o Direito de Família ou, mais prosaicamente, a separação de um casal nosso conhecido, eu seja influenciado pelo facto de que sou um homem e, naturalmente as minhas inclinações são no sentido de alinhar pelas posições que favoreçam mais o meu sexo. Poder ser errado mas é quase inevitável. No entanto faz todo o sentido que eu lute contra essa tendência natural.

Caso diferente é aquele das filiações escolhidas. Como por exemplo o SLB, ou a religião, ou ainda, no exemplo do divórcio referido acima, a minha amizade por um dos esposos. Quando analiso um problema qualquer em que isso possa ser um factor eu devo ou não tomar em conta os meus sentimentos pessoais? Do meu ponto de vista sim, mas somente para desempate. Ou seja, se pela análise dos dados perante mim postos eu tenho informação suficiente para formar uma conclusão em total independência essa deve ser a minha escolha. Se me faltam dados é natural que alinhe por aquele que é o meu grupo de pertença – os benfiquistas, ou que seguem a mesma Religião que eu, os amigos de Alex. Isto porque pertencer a um grupo é precisamente isso, é também tomar partido pelo grupo.

O Homem é um animal gregário. Tende a juntar-se em grupos que podem ser determinados pelos acidentes do seu nascimento ou pelas suas opções de adulto. Mas o preço a pagar por não ter suseranidades e vassalagens é, uma vez mais, viver em num magnífico isolamento que nos garante o moral upper ground dos indiferentes. Vale a pena viver assim? Sem nos molharmos? Sem tomarmos posição? Só para podermos dizer aos outros que somos melhores que eles? Mas não temos o dever (mais que o direito) de afirmar as nossas posições, de as difundir o mais possível, de lutar por elas? Se verdadeiramente cremos, inegavelmente sim. Claro que isto não é desculpa para revisitarmos a Historia ou escamotearmos factos.

Duas notas a propósito das filiações escolhidas:
• Em honestidade elas exigem um permanente questionamento. É necessário por sempre à prova a questão se estamos no grupo certo e se, nos assuntos que estudamos (e é necessário que eles existam) estamos de acordo com a linha seguida pelo nosso grupo. Só assim podemos aferir da possibilidade de o estar ou não nos outros. E, por consequência, de estarmos integrados no grupo correcto.
• O dever de pertença obriga-nos, se não a seguir publicamente a linha oficial, pelo menos a não a contrariar aberta e gratuitamente em publico. Mas também nos obriga a, nas organizações democráticas, a abrir o diálogo em interno. É verdade que esta postura para consumo externo, nos obriga a defender posições (ou pelo menos não atacar) com que não estamos em perfeita comunhão. Quando isso se passa no seio de um outro grupo de pertença (por exemplo discussões de desporto ou politica dentro de grupos de amigos ou em reuniões de família) temos que fazer um delicado jogo de equilibrista entre as nossas filiações. Equilíbrio que se termina sempre por hierarquizar as nossas fidelidades – o meu amigo Fulano vale mais que o meu amor ao Glorioso? – ou, mais terra a terra o nosso conforto imediato – se discuto o penalty com o meu Pai estrago o serão, se discuto politica com a minha namorada acabo a dormir em minha casa.

Nesta categoria de influências eu incluo também a nossa própria história. Quantas vezes o nosso pensamento é influenciado por aquilo que fizemos no passado? E hoje continuamos a seguir uma determinada linha de raciocínio por coerência com o que pensamos/dissemos/fizemos há algum tempo sem o por em causa para não dar o braço a torcer perante terceiros ou nos próprios ou, ainda mais profundo, para ter que reconhecer os falhanços intelectuais do passado.

Terceira categoria de dependências
“The hand that rocks the cradle rules the world” dizem os nossos amigos norte americanos. Na realidade, todos somos todos obrigados pelo nosso património genético e cultural.

Educado a pensar de uma determinada maneira eu posso rebelar-me contra os valores que me deram mas, dificilmente, vou alterar completamente o referencial. Mesmo se decidir assim, não acontece imediatamente. Peguem num exemplo simples: quanto britânicos de mais de 50 anos “pensam métrico” e quando é que realmente começaram a faze-lo? Ainda mais perto, quantos anos é que vai demorar para deixar de pensar em “contos”? Claro que se trata de exemplos ridículos, de baixa extracção quando se está a falar da independência do espírito. Mas ilustrativos do ponto que eu quero fazer.

Além disso, precisamos todos de um referencial. Logo somos, por definição, influenciados por ele. Einstein explicava isso melhor do que eu consigo perceber, quanto mais explicar eu próprio.

Quanto à influência do património genético, basta pensar nas lições televisivas de Português de uma Edite Estrela de 30 e poucos anos. É um outro exemplo de baixa extracção, pois sim. Mas uma vez mais, ilustrativo da “não independência absoluta do espírito”.

Ou, mais seriamente, pensemos na capacidade intelectual com que todos nós somos dotados. O espírito do já mencionado Einstein é mais independente do que o meu, porque é mais poderoso. Ele podia portanto elaborar raciocínios mais complexos porque era capaz de se abster de menos postulados. Era mesmo capaz de criar postulados novos e raciocinar a partir deles. Esta capacidade de derrubar as baias do pensamento é uma consequência directa da capacidade intelectual de cada um. Não só de se libertar dos condicionalismos mas sim de conseguir pensar para além deles.

Conclusão
No dia a dia o nosso espírito é chamado a reflectir sobre vários tipos de assuntos:
• Aqueles em que a questão da independência do espírito não se põe, e que são a maioria:
o Os que resolvemos automaticamente – respirar, comer com garfo e faca, atravessar a rua – ou quase – qual o melhor caminho para ir para o escritório, que gravata levar.
o Aqueles que resolvemos com maior ou menor reflexão mas onde a questão da independência se não põe – a demonstração de software da próxima semana, a proposta a entregar nesta, o relatório a enviar para a Sede ou para um Cliente, a equação do TPC do filho ou o filme da televisão.
• Aqueles onde a questão da independência do espírito se põe e que:
o São meramente de actualidade – que posição tomar sobre as declarações do Primeiro Ministro a respeito da AACS?, que fazer dos GNR no Iraque?
o Relevam do nível dos princípios e da maneira de estruturar a nossa vida e a sociedade – a questão do aborto (que é indissociável das questões mais vastas da Vida e da Religião), as escolhas políticas (que dependem da nossa visão da sociedade).
o São abstractos ou os mais filosóficos – Deus existe?, o Homem tem direito de utilizar o planeta em beneficio próprio e detrimento de outras formas de Vida?

No caso em que a independência é posta em causa, quais são as principais ameaças à independência do nosso pensamento:
• O acesso à informação, que é muito importante nas questões de actualidade.
o Nós seleccionamos um (ou vários) fornecedor(es) de informação e é (são) ele(s) que nos alimentam o espírito. Quando decidimos sobre qualquer assunto fomos naturalmente influenciados pelos dados a que conseguimos aceder.
o O nosso tempo é escasso e vários interesses lançam-se sobre ele de uma forma predatória. Com um tempo reduzido para nos informarmos é cada vez mais deficiente a base sobre a qual se constrói o edifício das nossas ideias e cada vez mais dependente de influências externas é o nosso raciocínio.
o No entanto estas são as consequências de viver neste Mundo que é o nosso. Não há alternativas a um horário sobrecarregado e a sermos informados por uma fonte indirecta. Só nos resta escolher bem
• As nossas filiações e pertenças condicionam as nossas escolhas intelectuais.
o Um benfiquista terá tendência para tentar encontrar justificação para o penalty que deu a vitória ao Glorioso em lugar de analisar o desenrolar do jogo de uma forma imparcial.
o Um nacionalista americano vai privilegiar os Founding Fathers em detrimento de May Lay, quando estiver a contar a história da União.
o Perante um divórcio, a tendência natural vai ser de alinhar com aquele dos cônjuges a quem nos ligam laços de amizade.
o Se, por um lado é desejável que se lute contra essas “tendências naturais”, por outro lado o alinhar posições pelos grupos de pertença é não só um sinal dessa mesma pertença e de confiança no grupo como, nos casos das filiações intelectualmente coerentes uma manifestação de uma afinidade real.
• A nossa história pessoal condiciona o nosso pensamento.
• Em cada um de nós estão gravadas uma série de valores e referenciais que nos foram dados pela educação que recebemos e, também, por aquela que nos fomos fazendo.
o Esses valores são determinantes na maneira como o nosso raciocínio fluí. Podemos argumentar que, também aqui temos a obrigação de lutar contra as ideias que nos foram dadas. É verdade que o devemos fazer mas, tal como na questão das pertenças, devemos ter em conta quais é que são as traves mestras da nossa identidade e estarmos preparados para as aceitar (e reconhecer) como limitações auto impostas à nossa liberdade e independência de pensamento.
• Sobra um nível de limitação do nosso espírito. Essa é a limitação dos nossos gostos e afinidades.
o A minha capacidade de criar (forma maior do pensamento independente) é maior ou menor em função das áreas onde se exerce. Exemplo paradigmático disso é a criação artística.
• E, no mais profundo de nós mesmo existem as limitações de “hardware”.
o A minha capacidade de pensar de uma forma independente está intimamente ligada à minha capacidade intelectual.
 Eu sou tão absolutamente incapaz de ter um pensamento independente sobre a Teoria Unificada Geral como sou de voar. Está para além das minhas capacidades intelectuais.

Nota pessoal
Um bom exemplo de tudo o que disse é esta minha nota. Sobre um tema como a “A independência do espírito” a minha aproximação poderia (deveria ?) ter sido mais filosófica. Mas eu sou incapaz de pensamento abstracto, tenho as minhas convicções e, sempre o admiti, sou um apaixonado pela Política. Por isso a minha reflexão é no âmbito do dia-a-dia e ligada principalmente às escolhas que fazemos nas questões de sociedade e menos sobre as escolhas individuais, sobre a independência das ideias tidas como entidades próprias ou sobre qualquer coisa de maior elevação a que o meu limitado cérebro não chega. E se digo limitado não estou só a dizer que sou estúpido (se bem que não seja tão inteligente como gostaria e, se calhar, penso que sou); se digo limitado estou a dizer limitado pelas minhas escolhas, pelo meu passado, pelos meus próprios interesses. Porque o meu espírito não é independente, dirão alguns.


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